
Você era uma criança quieta num canto da sala. Você não parecia estar mal, ou assustada, logo ninguém se preocupava. Você fazia tudo direitinho e não incomodava. Foi assim que você aprendeu a agradar e sobreviver, ocupar o mínimo de espaço, não ser notada.
Mas, de repente, você já não era criança. O mundo já não era tão simples, as coisas que te exigiam faziam cada vez menos sentido. Você nem sentiu essa mudança porque nada parecia mudar. Mas você sabia, quando olhava em volta, que as coisas estavam estranhas. Para poder simplesmente estar na vida, era preciso estar desconfortável.
Como você nunca precisou pedir ajuda, você nem sabia onde procurá-la. Como você nunca soube incomodar, as pessoas nem sabiam que algo estava errado. Como você nunca soube fazer barulho, as pessoas assumiam que você era sempre a mesma criança quietinha, a quem nada podia abalar. Foi aí que a divisão ficou muito mais clara: havia você, e havia os outros. Para os outros tudo era fácil, para você tudo era custoso e confuso.
Então você passou a vestir essa dificuldade como quem veste um disfarce. Você inventou uma capa e uma máscara, e não permitia que ninguém olhasse além disso. Você nem sequer imaginava que alguém pudesse de fato ver além disso. Agora já não era custoso demais chegar até as pessoas: você nem mesmo queria estar com elas! Você não as entendia, e elas não te entendiam. Aquele sentimento opressivo no peito, o suor nas mãos, o gaguejar – tudo indicava que você não devia estar perto delas. Por que você iria querer fazer algo que te causava uma sensação tão ruim voluntariamente?
Não, você só podia ser diferente. Um ser humano que, em vez de desejar ardentemente o afeto, a conexão, a compreensão, a cumplicidade de outros seres humanos, amava o isolamento, habitar os próprios pensamentos como se habita um quarto, viver em castelos de imaginação e fantasia. Você nem sabia o que significava, ou como era possível, existir qualquer relação entre humanos. E você nem queria mais saber. Era uma vez uma pessoa que amava a solidão e as noites escuras, que passava os dias ouvindo o eco da própria voz na cabeça…
Até que algo terrível aconteceu. Um dia você acordou e percebeu que não sabia mais o que fazer com a própria companhia. Aquele desespero de fundo (que nunca tinha ido embora) havia roído primeiro seus momentos de prazer, depois seus momentos de alívio, depois seus momentos de indiferença, até que não sobrou um momento de distração que não te lembrasse do que você queria esquecer: Estou só. Não sei falar com as pessoas. As pessoas, na verdade, me assustam. Nunca me ensinaram a interagir, e eu nem sabia que tinha que aprender! E agora?
Sua reação, desesperada e de improviso, sua reação foi a mais natural. E se eu fizer hoje o contrário de tudo que fiz? E se em vez de me esconder sob o manto da solidão e da timidez eu olhar para as coisas de que eu me escondia em primeiro lugar? E se eu extroverter minha introversão, e ver o que há no avesso de tudo que penso e sei?
Você, depois disso, parou para olhar sua história, assim como quem olha um filme que está agora passando na TV. Digamos que você se sentou à beira de um rio, como quem senta para pescar. É fim de tarde e uma brisa fria agita o capim, mas não te agita. A única coisa que você faz é olhar sua história que vai refletida no rio, desde a tenra infância:
— Aqui estão todas as vezes em que te elogiaram pelo seu silêncio exemplar.
— Aqui estão todas as vezes em que te deram parabéns por não ser como aquelas crianças agitadas.
— Aqui descem todas as vezes em que não te deixaram ir a algum lugar, falar com alguém, brincar com alguém, por medo do que pudesse acontecer. Logo atrás vai o medo que também te deram de presente.
— Aqui vão, rápidas, todas as vezes em que você acreditou nas histórias que te contaram sobre você, todas as vezes em que quem estava ali era um personagem dessas histórias, e não você.
— Aqui vão passando, uma atrás da outra, as oportunidades que você teve de fazer diferente, e não conseguiu.
Você sente uma enorme vontade de chorar, de se levantar, ir embora para a cama, que é lugar quente, experimentar um pouco do conhecido, da zona de desconforto. Pode ser até que você chore, mas resiste a todo resto.
Aos poucos, através das lágrimas, você descobre um segredo, e se espanta: aquelas oportunidades passadas, as chances que você, por vergonha, perdeu, elas não ficaram simplesmente para trás. Você vê a correnteza vir trazendo novas e novas oportunidades. Algumas delas você percebeu pelo que eram, na época, e se escondeu. Outras você nem notou, e deixou passarem como uma folha passa com a água do rio. Essas foram a maior parte. Você começa a discernir um padrão:
— A coisa de que eu fugia, afinal, era isso dentro de mim? E cada vez que eu fugia, eu me voltava mais para dentro, para mantê-lo bem preso, meu monstro no labirinto. E cada vez que eu me voltava para dentro, eu me impedia de ver o mundo, e as chances que o mundo dava. A coisa da qual/para qual eu fugia era eu. A coisa que me chamava/que me queria era o mundo.
Você se levanta agora, olhando a sucessão de eventos que constitui uma vida, em meio à infinidade de eventos que constitui o mundo, em meio ao universo de eventos que é tudo que existe. As coisas agora fazem mais sentido, porque você encaixou as peças. O passado e o presente agora fazem parte de um só enredo. Ainda que você não saiba exatamente o que fazer, você sabe agora o que não fazer: fugir de si para dentro de si. Você tira os olhos do rio e mira, pela primeira vez, o horizonte.